Uma Visão Técnica
A Lei nº 12.462, de 2011, que instituiu o Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC), a ser adotado nas licitações e contratos necessários à realização da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016, prevê diversas inovações à legislação vigente, ainda que com âmbito de aplicação limitado. Durante a tramitação, no Congresso Nacional, do Projeto de Lei de Conversão nº 17, de 2011, do qual se originou a referida lei, o RDC foi tratado como uma espécie de experiência piloto que, revelando-se bem sucedida, poderia ser estendida às licitações e contratos em geral, reguladas pela Lei nº 8.666, de 1993.
Uma das novidades que mais provocaram polêmica quando da tramitação da matéria no Poder Legislativo é a figura do orçamento sigiloso, prevista no art. 6º da nova Lei:
Art. 6º Observado o disposto no § 3º, o orçamento previamente estimado para a contratação será tornado público apenas e imediatamente após o encerramento da licitação, sem prejuízo da divulgação do detalhamento dos quantitativos e das demais informações necessárias para a elaboração das propostas.
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§ 3º Se não constar do instrumento convocatório, a informação referida no caput deste artigo possuirá caráter sigiloso e será disponibilizada estrita e permanentemente aos órgãos de controle externo e interno.
O sigilo de que trata o art. 6º vigorará durante todo o processo licitatório, ao fim do qual o orçamento se tornará público. No curso do certame, apenas os órgãos de controle interno e externo terão acesso permanente aos dados do orçamento.
A Lei nº 8.666, de 1993, em diversos dispositivos, exige que dados como o orçamento prévio elaborado pela Administração Pública sejam divulgados aos licitantes. Isso, por si só, já poderia gerar questionamentos quanto à validade da inovação que determina o sigilo do orçamento, em se entendendo que a Lei nº 12.462, de 2011, por possuir âmbitos espacial, temporal, subjetivo e material de vigência limitados, o que não se coaduna com o perfil de uma norma geral.
Por força do art. 22, XXVII, da Constituição, as normas editadas pela União sobre licitações e contratos só são vinculantes para Estados e Municípios quando possuem perfil de norma geral. E, quando legisla apenas para si, a União não pode contrariar as normas gerais que instituiu previamente.
Não se pretende, aqui, analisar o orçamento sigiloso pelo prisma da constitucionalidade, mas sim perquirir a respeito de sua conveniência e oportunidade. Sob essa perspectiva, cumpre registrar, de início, que o orçamento sigiloso nada tem de insólito. No âmbito da União Europeia, por exemplo, a legislação que trata do assunto e dispõe sobre a publicidade dos processos licitatórios, não é impositiva quanto à divulgação do orçamento prévio elaborado pela Administração Pública.[2]
Alguns países-membros da União Europeia optaram por exigir, em suas legislações, a divulgação do orçamento. É o caso de Portugal, cujo Código dos Contratos Públicos (CCP), aprovado pelo Decreto-Lei nº 18/2008, prevê a divulgação dos preços estimados das contratações no anúncio de pré-informação e considera como informação essencial, a constar do caderno de encargos, o preço base, utilizado como parâmetro para a contratação.[3] Na França, ao revés, o Código de Contratos Públicos, em seus arts. 40, V, e 150, V, dispõe que o ente ou órgão contratante não é obrigado a divulgar, no edital de licitação para a contratação de obras, serviços ou fornecimentos, o preço estimado das prestações esperadas[4].
Nos Estados Unidos, o Regulamento de Aquisições Federais, norma que regula os procedimentos de contratação no âmbito do Governo Federal, prevê que o acesso às informações referentes ao orçamento elaborado pela Administração, no tocante aos contratos de obras a serem celebrados, deve-se limitar aos funcionários cujos deveres requerem tal conhecimento, permitido o levantamento do sigilo em relação a serviços especializados, durante as negociações do contrato, na medida considerada necessária para se chegar a um preço justo e razoável.
Em todo caso, a norma norte-americana veda a divulgação do montante global do orçamento governamental, exceto se permitido pela legislação do órgão. O mesmo regulamento, ao cuidar dos avisos de licitação para contratar obras, determina que eles contenham detalhes suficientes sobre a natureza e o volume da obra, incluindo a faixa estimada de preço. Contudo, nem as faixas de preço nem outros dados sobre a magnitude da obra podem revelar o valor efetivo do orçamento prévio da Administração.[5]
No Brasil, conforme divulgado pelos órgãos de imprensa, o Poder Executivo defendeu a instituição da figura do orçamento sigiloso com o argumento de evitar a prática de elevação dos preços e de formação de cartel.[6]
Ora, a formação ou não de um cartel independe da divulgação dos orçamentos prévios elaborados pela Administração promotora do certame. Com ou sem orçamento, cartéis poderão se formar. O que pode variar é o êxito dessa estratégia. Os cartéis costumam dividir o mercado de obras públicas mediante combinação dos preços das propostas apresentadas pelos seus integrantes. Escolhe-se previamente que licitante vencerá cada certame. Todos os demais participantes do conluio oferecem propostas em valor superior, de modo a possibilitar a sua vitória. Com isso, e tendo acesso ao orçamento previamente divulgado, o integrante do cartel ao qual foi atribuído o objeto da contratação pode oferecer uma proposta de preço mais próxima do valor máximo admitido pela Administração, mas que não o ultrapasse, evitando sua desclassificação.[7]
Em um mundo onde não haja corrupção dos agentes públicos, a manutenção do orçamento em sigilo pode funcionar como estratégia de combate à prática acima descrita. Com efeito, desconhecendo o valor máximo admitido pela Administração, o licitante (mesmo na hipótese de combinação de preços pelo cartel) terá incentivos para reduzir o valor de sua proposta, sob o temor de vê-la desclassificada, o que redundará em margens maiores de desconto para o Poder Público, relativamente ao valor constante do orçamento. Nesse sentido, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), ao editar suas Guidelines for fighting bid rigging in public procurement (Diretrizes para combater conluios nos certames para contratação pública), recomendou:
Use um preço máximo somente quando ele for baseado em minuciosa pesquisa de mercado e os funcionários estejam convencidos de que ele é muito competitivo. Não publique o preço, mas o mantenha confidencial, em arquivo, ou o deposite junto a outra autoridade pública.[8]
No mundo real, no entanto, essa ideia, concebida para combater o conluio de licitantes, pode resultar ineficaz quando: a) houver corrupção dos servidores públicos que tiverem acesso às informações sigilosas; b) os competidores se recusarem a baixar os preços de suas propostas.
O primeiro caso é de simples compreensão: se os integrantes do cartel obtiverem informações privilegiadas de agentes públicos corruptos, a prática antes descrita continuará sendo possível.
Já no segundo caso, se os licitantes continuarem a oferecer propostas com preços superiores aos do orçamento da Administração, será necessário renovar o processo licitatório, até que algum deles apresente proposta em valor inferior ao do orçamento, ou, nos termos do parágrafo único do art. 26 da Lei do RDC, negociar com o autor da melhor proposta a sua redução até que alcance o valor orçado pela Administração[9]. No limite, os licitantes descobririam o valor do orçamento da Administração, por um método de tentativa e erro, e o sigilo inicial do orçamento seria de muito pouca valia.
Assim, embora a previsão do orçamento sigiloso seja justificada com o argumento de que ele poderia combater estratégias cartelísticas, é duvidosa a sua eficácia. Em um mercado cartelizado, bastará aos participantes do conluio persistir nas práticas atuais, para obterem resultado semelhante aos verificados atualmente. Se todos oferecerem propostas de preço superiores ao orçamento sigiloso da Administração, esta findará por negociar melhores condições com o autor da melhor proposta, valendo-se do disposto no parágrafo único do art. 26 da Lei, até que o preço por ele oferecido se equipare ao constante do orçamento.
Como alternativa aos procedimentos descritos no parágrafo anterior, o órgão ou ente promotor do certame poderá realizar a contratação direta, com base no inciso VII do art. 24 da Lei nº 8.666, de 1993, que estabelece ser dispensável a licitação quando as propostas apresentadas consignarem preços manifestamente superiores aos praticados no mercado nacional, ou forem incompatíveis com os fixados pelos órgãos oficiais competentes, casos em que, observado o parágrafo único do art. 48 desta Lei e, persistindo a situação, será admitida a adjudicação direta dos bens ou serviços, por valor não superior ao constante do registro de preços, ou dos serviços.
Estudiosos do Direito Administrativo costumam ressaltar a importância da divulgação do orçamento prévio nas licitações, seja pela invocação genérica do princípio da publicidade e da transparência na Administração Pública, seja pela identificação de riscos concretos do uso do sigilo para desvirtuamentos, como no caso da produção de valores máximos destinados a prejudicar determinados licitantes.[10] Isso pode ocorrer quando o administrador mal intencionado, de posse das informações sobre as propostas dos licitantes, apresenta a posteriori um orçamento com valores que conduzam à desclassificação de determinadas propostas, por inexequibilidade, de acordo com as regras de aferição contidas nos §§ 1º e 2º da Lei nº 8.666, de 1993.
A situação descrita pode-se agravar, no caso da Lei nº 12.462, de 2011, porque esta sequer estabelece regras para aferição da exequibilidade das propostas (art. 24), limitando-se a delegar a regulamento o tratamento do tema, no caso de obras e serviços de engenharia. É bem verdade que o acesso permanente às informações por parte dos órgãos de controle pode reduzir esse risco, desde que, obviamente, haja fiscalização efetiva.
Outra hipótese de desvirtuamento dos propósitos invocados para a previsão do orçamento sigiloso é a alteração do orçamento inicialmente elaborado, após a abertura das propostas, para evitar a renovação do processo licitatório, quando nenhum dos licitantes apresentar proposta abaixo do valor máximo definido originalmente pela Administração. O agente estatal pode ver-se tentado a adotar esse expediente, para evitar atrasos no cronograma de realização do objeto, mormente em face do tempo que resta para o início dos eventos desportivos em comento.
Uma forma de evitar isso, bem assim os casos de dirigismo, seria, como preconizado pela OCDE, manter uma via do orçamento, lacrada, sob custódia de uma autoridade pública não vinculada ao órgão ou ente promotor da licitação (o Tribunal de Contas, por exemplo). Outra alternativa seria tornar público o orçamento após a entrega das propostas, mas antes da abertura dos invólucros que as contêm. De qualquer modo, a simples previsão de acesso irrestrito aos dados do orçamento pelos órgãos de controle interno e externo já constitui um mecanismo importante para mitigar os riscos de práticas como a anteriormente descrita.
Em resumo, visto sob a ótica da conveniência e oportunidade, o orçamento sigiloso não constitui uma aberração, mas também não pode ser considerado uma panacéia. O êxito na consecução dos fins que ensejaram a mudança legislativa, mais do que dos méritos da nova Lei, depende fundamentalmente das condições de sua implementação.
Renato Monteiro
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